terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Racismo e Seus Impactos no Desempenho Escolar das Crianças Negras

        Escrevo após reflexões diárias que tenho feito há poucos anos, sim a poucos anos, pois foi através do recente contato com o Feminismo Negro e da minha experiência neste espaço que comecei a fazer um resgate de minha história e das minhas vivencias com o racismo na infância, de poder reinterpretar o que vivi e enxergar que o racismo foi extremamente presente e responsável por muito do meu sofrimento que, na época, me era desconhecido. O racismo na infância é algo que, inegavelmente, precisa ganhar maior visibilidade nas discussões. Principalmente no que se diz respeito aos espaços de socialização como as escolas. A escola tem um lugar de extrema contradição, pois ao mesmo tempo em que este espaço propõe uma educação para formação e conscientização de cidadãos e cidadãs de forma crítica podemos observar que ela tem sido uma lugar de reforço de opressões que tem submetido as crianças negras a um desgaste emocional e a uma destruição de seus potenciais e auto estima de forma devastadora.

fonte: <http://goo.gl/xau0YT>
        A escola é onde se deposita muitas das esperanças para a transformação social. Sabemos que a educação é um meio poderoso para viabilizar mudanças relevantes e, inclusive, no combate as opressões. Mas infelizmente temos visto que este espaço tem sido palco de diversas brigas tanto nos espaços legislativos, para implementação de projetos que venham trazer para a escola o debate das opressões, quanto até mesmo dentro da própria escola, que tem sido contraditória no que diz respeito a proposta do que deveria ser uma educação transformadora. A maneira como o racismo tem se cimentado na escola é um fator que impacta de forma poderosamente negativa sobre nossas crianças negras e que se reflete nas outras fases de nossas vidas. São os sonhos que alimentamos na infância que nos impulsionam a criar diversas trajetórias em nossas vidas, é de onde vêm nossas expectativas mais bonitas e positivas que nos motivam a acreditar que podemos chegar a qualquer lugar, basta que tenhamos vontade para isso. E aí, neste momento, a gente se questiona: mas não parece óbvio que nós podemos chegar a qualquer lugar, basta acreditarmos? Em partes sim! Mas as coisas não são tão simples como parecem. E aqui enfatizando as vivências das crianças negras, algumas coisas que muito são ignoradas pela escola são essências para que elas tenham todos os seus sonhos destruídos e suas expectativas e potenciais jogados no lixo.

        O racismo age de N maneiras na infância. Dia após dia, ele se faz presente nos fazendo acreditar cada vez mais que "Não! Para nós as coisas não irão funcionar desse jeito". Desde muito novos somos obrigados a confrontar o racismo todos os dias, uma tarefa que não é fácil para ninguém na fase adulta agora imaginemos como isso atua na infância. Pessoalmente percebi aos 3 anos de idade (sim, acreditem!) a existência do racismo e foi na escola o lugar onde ele me foi "apresentado". Lembro muito nova que sempre era a única sentar-se só numa mesinha onde cabiam 4 e que minha presença nas outras mesinhas com outros colegas só era feita quando por intermédio da professora, algo que não era muito comum. Pelo costume de sempre sentar-me sozinha comecei a me isolar e a cada dia ir ficando mais e mais no canto da sala em silêncio. Consequentemente, a socialização com os "amiguinhos" era muito difícil, assistir as aulas só, lanchar só, sem brincadeiras no recreio... Acabei me acostumando a estar nessa condição. Mas há uma cena que nunca me esqueço, que foi o dia que percebi o que era o racismo: sentada sozinha numa das mesinhas de 4 lugares ao lado da janela no canto da sala que ficava no 1º andar da escola, eu comecei a pensar "porque que eu sempre me sento sozinha?", "porque que é tão difícil eu poder brincar com os meus colegas de sala?". Observando todas as interações entre eles eu me perguntava "quando é que eu vou poder estar assim também?", "será que mais ‘pra frente’ as coisas vão mudar?", "o que há de diferente?". E pensando e pensando sobre isso, durante a aula, eu cheguei a uma conclusão: olhando os meus colegas os vi diferentes de mim em sua cor, eram brancos, a professora era branca, a maioria das crianças da escola eram brancas. Lembro como se fosse hoje de ter olhado para meu antebraço, muito cabeludinho, e perceber a minha cor. Mal sabia que aquele episódio me marcaria para o resto de minha vida. E depois disso, o que se passa na cabeça de uma criança? Eu realmente não tinha noção de muita coisa, não soube o que fazer depois, ou ao menos sabia se havia o que fazer, eu simplesmente aceitei que as coisas eram assim. E aqui ressalto o porquê desse recorte nesta escola, era uma escolinha particular, que se localizava no centro da cidade. Meu pai sempre se preocupou em me dar uma boa educação escolar e se esforçou em me colocar nesta escola porque isso era algo importante para minha família. Minha casa não ficava no centro da cidade, era e ainda é num bairro periférico muito longe de lá. Nas minhas lembranças eu acreditava que tinha estudado um ano inteiro naquela escola, principalmente por ter chegado à aquela conclusão sobre o racismo e as relações entre meus colegas. Mas há alguns anos perguntei a minha mãe sobre minha estada lá, e me surpreendi quando ela me disse que estudei naquela escola por apenas pouco mais de três meses. Depois fui transferida para outra, também particular, e o racismo me acompanhou, foi nessa outra escola em que estudei por mais sete anos que tive minhas piores experiências com essa opressão. O racismo não tem tempo e nem poupa ninguém ele está em todos os espaços, está nas relações entre as pessoas, está na maneira como elas enxergam umas as outras. Tão logo entrei no convívio escolar e já o percebi.
fonte: <http://goo.gl/8Y5AC5>

        Bom, não irei me aprofundar, neste texto, em minhas experiências terríveis com o racismo na escola. Ainda é algo que me dói muito e pouco falo sobre ele abertamente e não consigo fazê-lo senão entre lágrimas, mesmo após os 25 anos de idade. Tenho encontrado forças para lidar com isso com o Feminismo Negro e com o apoio direto e indireto das irmãs pretas que me compreendem. Foi depois desse novo olhar que pude retornar à minha infância e reinterpretar todas as coisas que me aconteceram e perceber como o racismo esteve tão presente e o que ele fez comigo. Anteriormente isso já me doía, mas não consigo descrever o quanto que essa dor se multiplicou quando eu passei a me dar conta de tudo, de ver o quanto que fui "podada" nesta vida e saber que tive muito dos meus sonhos destruídos em minha infância e adolescência, de tudo que poderia ter feito e não fiz por não me achar capaz, assim como tudo que acabei fazendo para tentar contornar as coisas. Mas venho citar isso neste texto para enfatizar que tão logo conhecemos o social e o racismo se apresenta. A escola é um lugar de convivência e a escola reflete o que está além de seus muros. O racismo também está nas escolas, sejam elas públicas ou particulares, se manifestando de formas diferenciadas nestes espaços, mas está a todo tempo exercendo sua força negativa sobre as crianças negras.

fonte: <http://goo.gl/o8D1hL>
        Nossas crianças negras ao olharem para o mundo logo percebem em que condições estão os seus. Somos minoria como médicxs, juízes, advogadxs, empresárixs, doutorxs dentre tantas e tantas outras posições. A tevê nos mostra o tempo todo que o nosso lugar é na subserviência, que altos cargos e prestígio não são para nós. Estamos sofrendo com o racismo institucional e estrutural do estado em nossas comunidades, na saúde, na segurança pública, no direito, na educação... A maioria de nós está na pobreza precisando de amparo. Estamos sujeitos, a todo o momento, ao racismo enraizando na cultura brasileira que nos expõem a uma série de negatividades sobre nós mesmxs e destroem nossa auto-estima. A se ver nessas condições, que esperanças essas crianças podem cultivar em suas vidas? Faltam-lhes referências para alimentarem seus sonhos... Elas vêem poucos dos seus avançando na vida, isso quando vêem! Não quero dizer que as referências não existam, somos minoria, mas estamos aos poucos ocupando os espaços. E onde estão estas pessoas? Porque nos escondem de nós mesmxs? Porque escondem de nós as nossas referências? Porque não se falam delas? Somos gritantemente silenciadxs pelo racismo! Desta forma as crianças negras acabam por se sentirem incapazes de chegarem a algum lugar e, além disso, a pobreza força muitas delas a se afastarem da escola para trabalharem desde cedo, porque infelizmente para muitas não dá para esperar, por que a trajetória é muito longa e a fome não espera.

        Para xs que resistem na escola a tarefa não é nada fácil, você acaba precisando se posicionar diante das coisas. Você pode se posicionar frente ao racismo se reafirmando e esse é o caminho mais duro, pois o mundo está para te negar a existência e você precisa ser consciente o suficiente para enfrentar o dia a dia que se torna um campo de batalha, e o desgaste é imenso! Mas, infelizmente, muitxs acabam cedendo a alienação da "democracia racial" brasileira. É mais "fácil" se você cede para o embranquecimento. É mais "fácil" se você alisa seu cabelo, se você usa cremes para clarear sua pele. Seria "melhor" se você fizesse uma cirurgia que afinasse o seu nariz. É mais "fácil" se você aceitar a subalternidade que te impõem. É "melhor" que você aceite que aquele lugar não é para você, que aquele lugar é para o branco, e assim seguimos numa convivência social de pura "paz" entre brancos e negros. E é assim que nossas crianças negras internalizam toda a opressão que sofrem.

fonte: <http://goo.gl/9I3Bbr>
        Estou cursando Licenciatura em Biologia, e durante o período do estágio pude observar essas coisas a partir de um novo lugar: o de professora. Estagiamos numa escola periférica onde a maioria dxs estudantes são negrxs. Durante os encontros com a professora ministrante da disciplina de estágio tão grande era o descontentamento dos meus colegas ao se depararem com tantas dificuldades. Várias foram as falas sobre a frustração de se entrar na sala de aula e perceber que parecia que xs meninxs não estavam interessados em aprender alguma coisa. Lembro de um colega ter nos contado que ao perguntar aos estudantes o que eles queriam “ser na vida”, as respostas delxs foram realmente muito tristes. Ele enfatizou a fala de um garoto que o respondeu dizendo que queria trabalhar numa fábrica de calçados da cidade ganhando um salário mínimo (lugar que, inclusive, as condições de trabalho não são lá muito boas) para que pudesse juntar algum dinheiro e comprar uma moto para trabalhar como moto-taxi. Não quero aqui dizer que ser moto-taxi não é um trabalho digno, muitos sustentam suas famílias com o que provêm desse trabalho que, inclusive, se dá de forma alarmantemente informal em minha cidade. Mas a minha pergunta no momento foi "Porque eles não conseguem acreditar que poder ser mais que isso?". Ao nos contar esse depoimento alguns colegas da sala riram, até que um outro complementou "Ele vai pensar assim até o momento em que ele, infelizmente, descobrir que o tráfico pode 'oferecer' muito mais", e então todos pararam para refletir. Sinceramente, não há o que rir de uma coisa dessas. Estamos falando do quanto que a auto-estima dessas crianças está destruída. Isso é assustador! Pensando assim que esperanças elxs podem depositar na educação? Depois desse ocorrido, numa outra disciplina de estágio, onde as aulas ocorriam na mesma escola porém direcionado ao ensino médio, em uma de minhas aulas eu dediquei alguns minutos para falar sobre expectativas e sonhos com xs meus/minhas alunxs, e ao questioná-los "Porque que a gente acredita que não pode chegar em alguns lugares?" o silencio pairou na sala e eles se puseram a pensar. E então, porque que eles silenciaram e não se puseram contra minha fala dizendo que "Não, pró! Eu não acho que eu não posso!"? Era tudo que eu queria ouvir, mas, infelizmente, não foi o que aconteceu.

fonte: <http://goo.gl/7KnMB8>
           Por tudo isso, e por tantas outras coisas que é necessário levar para as escolas a questão racial. Por isso é importante nos posicionarmos diante do racismo no cotidiano, seja quando vamos ao mercado ou quando assistimos tv, em casa e na rua. Venho, também, enfatizar a importância da implementação da Lei nº 10.639/03 que obriga o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas das redes de ensino públicos e privados, e que já existe a mais de um década e ainda não foi efetivada. Essa abordagem nas escolas será importante não só para que nossas crianças saibam da importância desses elementos na construção do nosso país e trazer-lhes um novo olhar para esta questão, mas também para que as crianças negras saibam de sua importância na construção desta sociedade. Para que possam se conscientizar da situação da população negra neste país, para que debatam sobre o racismo e saibam como ele as atingem diariamente e, assim, combatê-lo. E, não menos importante, para que isso se reflita também de maneira positiva para elevação de sua auto-estima e fortalecimento de seus potenciais e semeio de seus sonhos.

Sheu Nascimento

Nenhum comentário: